Artigos, Publicações

Família sem Preconceitos

MonicaAna Mônica Amorim*

De há muito restou superada a figura estigmatiza de que uma família seria representada pelas figuras do pai, da mãe, e do filho. As novas entidades familiares descortinam-se não só como uma realidade social, mas também uma realidade jurídica. Frequentemente, vislumbramos famílias formadas por apenas um dos pais e seus filhos (monoparentais), formadas por pessoas que se unem sem o matrimônio (união estável), formadas por pessoas que nutrem entre si afeto, independente de unirem-se por laços biológicos ou sexuais (anaparentais), formadas a partir da dissolução de outras famílias – os meus, os seus e os nossos (mosaico ou pluriparentais), formadas por pessoa do mesmo sexo (homoafetivas), dentre outros arranjos familiares.

O que há em comum entre estas novas formas familiares? Amor, respeito, dignidade, felicidade (…), não podendo o direito negar-lhes existência, nem tampouco proteção. O ser humano busca constantemente ser feliz, e esta felicidade (eudemonismo), deve ser respaldada pelo direito. Neste sentir, as uniões homoafetivos merecem e devem ser vistas como entidades familiares, a partir da premissa do pluralismo das novas famílias, reconhecendo-se proteção jurídica e cientes de que tais núcleos são formados a partir de pessoas se amam e que merecem ser felizes.

O Ministro Humberto Gomes de Barros do Superior Tribunal de Justiça, com bastante percuciência afirma que “o homossexual não é cidadão de segunda categoria. A opção ou condição sexual não diminui direitos e, muito menos, a dignidade da pessoa humana” (STJ – REsp 238.715).

Os direitos dos casais homoafetivos (permitam-me usar esta expressão, costurada a partir do pensamento de Maria Berenice Dias, em contraponto ao ultrapassado uso da expressão homossexualismo – o sufixo ismo, denota uma enfermidade), e que outrora representavam um tabu, um dogma, hoje descortinam-se como uma realidade inconteste e merecedora de respaldo jurídico.

Historicamente, há cerca de 10 mil anos, as tribos das ilhas de Nova Guiné, Fiji e Salomão, no oceano Pacífico, já exercitavam algumas práticas homossexuais em forma de rituais.

Na Grécia, o exercício da sexualidade entre pessoas de gênero idêntico se dava livremente, fazendo parte do cotidiano de deuses, reis e heróis. O filósofo grego Sócrates (469-399 a.C.), defendia que o sexo entre heterossexuais servia apenas para procriação.

Em Esparta, onde o serviço militar preponderava em detrimento do desenvolvimento cultural, o amor entre os homens era estimulado dentro do exército, com o objetivo de torná-los ainda mais eficientes.

Mesmo diante de fatos sociais/históricos claros, a ciência jurídica sempre furtou-se ao reconhecimento das relações homoafetivas, munindo-se de vendas que colocavam os homoafetivos como cidadãos impuros, e a margem da sociedade.

A sociedade mudou, a ciência jurídica evoluiu, Maria Berenice Dias (In. Manual das Famílias, 2014, p. 205) bem afirma que a homoafetividade “Não é crime nem pecado; não é uma doença nem um vício. Também não é um mal contagioso, nada justificando a dificuldade que as pessoas têm de conviver com homossexuais. É simplesmente uma outra forma de viver”.

Neste esteio, o Supremo Tribunal Federal em julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº 132, de 05 de maio de 2011) reconheceu a existência de união estável entre pessoas do mesmo sexo, ao revés do que muita gente pensa, os Ministros da Suprema Corte jamais tencionaram legislar, e sim, interpretaram a Lei Civil (Código Civil – Lei nº 10.206/2002) à luz dos preceitos esculpidos na Constituição Federal de 1988, denotando-se: todos são iguais perante a lei, independente de sexo, raça, cor, gênero, ou opção sexual; todos tem a liberdade de escolher com quem irá constituir uma família; e por fim, todos são dotados de dignidade, por sua condição humana.

Este precedente serviu de alicerce para diversas outras decisões, destacando o Superior Tribunal de Justiça que em seu Recurso Especial nº 1.183.378, de 25 de outubro de 2011, permitiu a conversão da união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo. Nesta crescente marcha, o Conselho Nacional de Justiça, mediante Resolução nº 175, de 14 de maio de 2013, vedou aos cartórios a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo.

O assunto ainda não fora superado, nem tampouco, exaurido, ao contrário, os homoafetivos enfrentam diuturnamente batalhas para que possam ver reconhecidos direitos dos mais prosaicos, e comuns aos heterossexuais. Os legisladores furtam-se em seu mister constitucional, seja por medo de desagradar parte conservadora da sociedade, seja pelo próprio preconceito que os acometem.

Os direitos dos homoafetivos não se limitam apenas ao reconhecer a família formada pelos mesmos, mas acima de tudo, os consectários normais de uma entidade familiar. Destarte, já restou assegurado pelos Tribunais, garantido aos casais homoafetivos: a adoção unilateral (STJ – REsp 889.852), a meação do patrimônio adquirido por esforço comum (STJ – REsp 148.897), a inelegibilidade de parceiro do mesmo sexo (TSE – REsp Eleitoral 24.564), benefício previdenciário (STJ – REsp 238.715), direitos sucessórios (TJRS – Acórdão 70001388982), dentre outros.

A Lei nº 11.340/2006 – Lei Maria da Penha resguarda em seu art. 2º que toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social, e ainda dispõe no art. 5º, parágrafo único bem determina que as relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.

A sociedade muda, a ciência jurídica evolui, de forma a que os braços do direito possam envolver e assegurar aos cidadãos uma existência digna, respeitando-se premissas como liberdade, igualdade, respeito, felicidade. A família não é a mesma de outrora, mitigar direitos aos homoafetivos é trazer uma insegurança jurídica, é contaminar-se pelo preconceito, é esquecer o mandamento de amor ao próximo.

Machado de Assis em seu primeiro romance denominado Ressurreição “poetizou”: “Cada qual sabe amar a seu modo; o modo pouco importa; o essencial é que saiba amar”.

*Coordenadora do Núcleo de Aracati/Primeira Defensoria de Aracati