“É preciso encontrar caminhos para destruição do direito penal”
20/06/2016 | 01:30
Érico Firmo
Direito Penal não existe para fazer justiça, mas para vingança, acredita o desembargador aposentado Amilton Bueno de Carvalho. Ele aponta a maldade contida na ideia de encarceramento. Colocar alguém num presídio, afirma, é crueldade maior que a da maioria dos crimes. E, segundo Bueno de Carvalho, o princípio que norteia o Código Penal é o da exclusão. Ele afirma que todos cometem delitos. Ao adquirir ou baixar software pirata, dirigir após beber ou jogar no Bicho, por exemplo. Decidiu-se que alguns crimes entrariam no Código Penal e outros não. Em particular, crimes associados aos pobres, “clientela preferida do Direito Penal”, conforme afirma. Bueno de Carvalho visitou Fortaleza em maio, na véspera das rebeliões que deixaram 18 detentos mortos nos presídios cearenses.
O POVO – O que está errado no Direito Penal brasileiro para se ter chegado à atual situação carcerária e de segurança pública?
AMILTON – Tudo. Tem de desmontar e começar tudo de novo. O Direito Penal, na pós-modernidade, perde o sentido. Não cumpre as promessas que o legitimam. É uma grande mentira. É só discurso para satisfazer um sentimento odioso de vingança. É reprodutor de mais violência. Acho que a gente tem de encontrar caminhos para a destruição do Direito Penal. Ele promete prender o cara para recuperar. Pergunta a qualquer pessoa que tenha dois neurônios. Ela sabe que a única coisa que o presídio faz é ser uma fonte criminógena. O sujeito entra lá com um grau X de periculosidade, adquire a violência e a criminalidade da instituição social. E tu largas ele X+Y perigoso. O Direito Penal não causa medo às pessoas e não inibe a criminalidade. Estamos sem saber o que fazer com o dito homem violento. Como não sabemos o que vamos fazer, a sociedade quer se livrar dos caras. E se joga em presídio.
OP – O Direito Penal não fazer mais sentido, como o senhor diz, é uma realidade de hoje? Ele perdeu o sentido? Ou nunca teve?
AMILTON – Acho que ele já nasceu como um instrumento de exclusão. Não existe um sentido de bondade no Direito Penal. É assim: eu tenho nojo de algumas pessoas, quero me livrar delas, eu tipifico a conduta dessas pessoas para isolá-las.
OP – O Estado que cria e pune o problema?
AMILTON – O Estado é em si um problema. Eu não acredito no bom poder. Acho que todo poder é inexoravelmente abusivo. A necessidade é mandar, estar acima do outro, não reconhecer a alteridade. Então, também não acredito no poder, não acredito no Estado. Embora, o que fazer? Eu não sei o que fazer. O sujeito que for descobrir o problema de como superar o homem violento vai ganhar o Prêmio Nobel. O dia em que a gente fizer isso, nós vamos estar superando esse modelo de homem. Vamos estar, possivelmente, no além do homem que falava o (Friedrich) Nietzsche (filósofo alemão do século XIX). Porque nós somos violentos, nós somos constitutivos.
OP – O que colocar no lugar do Direito Penal? Alguma experiência no mundo sinaliza para isso?
AMILTON – Os caras acreditam que o problema da violência é a impunidade. Se eu acredito na impunidade, eu vou cada vez punir mais. A realidade está demonstrando, no mundo inteiro, que a punição não resolve. É um problema de fé, porque a característica do idiota é ter resposta para tudo. O idiota não tem dúvida. Se me perguntar o problema da criminalidade, eu te diria para procurar — que deve ter aqui em Fortaleza, possivelmente no fim da tarde — alguém em um programa policialesco, de um intelectual fantástico, que tem resposta para tudo. Ele vai te dar respostas. Eu estou na dúvida. Eu não sei o que fazer. O que a gente sabe é que quanto mais as pessoas são livres e iguais, a criminalidade diminui. Pega os ditos países ricos, onde a igualdade é maior, a criminalidade diminui lá. A criminalidade aumenta consideravelmente onde a contradição social é mais agressiva. Parece que o homem não consegue conviver com a contradição social.
OP – O senhor fala de Código Penal simbolizado no presídio. Tem-se discutido muito a penitenciária como problema. Até que ponto o problema é a penitenciária como estrutura e até que ponto ela é parte de um problema maior?
AMILTON – O Direito Penal é seletivo, ele escolhe algumas pessoas. Quando eu falo acabar com o Direito Penal, quero acabar com os presídios, não com a responsabilidade pessoal. É algo excludente. A escolha daqueles que eu vou excluir. É um sistema cruel, em que eu vou excluir o da outra classe social, não o da minha. Embora todas essas pessoas sejam delinquentes, nós não nos consideramos delinquentes. Delinquente é o outro. Daí que se explica porque 90% a 95% dos caras presos são pobres. Não é por coincidência e não é porque os pobres sejam mais delinquentes. É porque é uma clientela preferida do Direito Penal. Essa história da criminalidade é uma grande hipocrisia. Todas as pessoas são delinquentes. Inclusive tu (dirigindo-se aos entrevistadores). A tua mãe é delinquente, o teu pai é delinquente. Não tem DVD pirata na tua casa? Não tem esse troço do computador, esses troços que baixam esses programas? Jogo do bicho, uso de drogas, dirigir embriagado, estelionato? Nós todos somos delinquentes. Tu não conheces o cara que não seja delinquente. Tu não conheces o empresário que não seja sonegador. Só que nós rimos da nossa delinquência. A delinquência que nos faz mal é a dos outros. Quando eu digo eu quero segurança, eu tenho que perguntar: segurança para quem? Eu quero segurança para me livrar deles. O cara quando te assalta no semáforo às 18 horas, começou esse delito há 15 anos, quando não teve pai, não teve escola, quando olhou para a rua pedindo esmola. Nós construímos todo esse caos.
OP – Mas, cobra-se resposta imediata, agora. Não se pode ou não se quer esperar tanto. E se espera que o Direto Penal seja a resposta. É possível resolver isso?
AMILTON – Não é possível. Cada homem é absolutamente único e faz coisas únicas. Se eu estou preocupado com o delinquente, tenho de estar preocupado com essa pessoa isoladamente. O que eu posso fazer isoladamente para ajudá-la? Acho que nós perdemos, se é que já tivemos, esse compromisso com o outro. Mas, eu não jogo a responsabilidade no Estado. Acho que é um problema nosso, da humanidade. Eu não percebo o outro. O outro é instrumento para eu pisar em cima. E o Direito Penal fica selecionando, fazendo de conta que funciona, essa porcaria. Todo mundo sabe que não funciona, cara. Só que entra no problema de nós não sabermos o que fazer. Não sabemos.
OP – O senhor falou que é contra os presídios, mas não contra a responsabilização individual. Além da promessa de recuperar, o sistema penal tem o aspecto de servir de exemplo para que as pessoas não se sintam estimuladas a repetir o crime. Tanto que, para muita gente, a resposta é aumentar as penas. Como se pode lidar com esses aspectos?
AMILTON – Direito Penal não causa medo. Tanto que os presídios estão absurdamente lotados. Nunca se prendeu tanto. Não sabemos o que fazer com os caras, estamos botando empilhados, um em cima do outro. Presídio não tem sentido, é o mal em si. Nos países onde tem pena de morte, a criminalidade continua do mesmo jeito. Ninguém, até hoje, conseguiu justificar racionalmente presídio. Estou falando da Academia. Ninguém. A não ser que tu queiras vingança. Nesse caso, tu tens de ter uma discussão anterior, se o Estado, enquanto reserva ética, pode ser vingador.
OP – Mas a lógica do Código Penal não acaba sendo da vingança?
AMILTON – Não. Acho que é basicamente de exclusão. Tu vais notar que, em todo curso da história, estão nos presídios os caras de quem se quer se livrar. No tempo do golpe (1964) foram os caras da esquerda, por exemplo.
OP – Ouvi uma vez um relato de um jovem de periferia, que disse não ter medo de ser preso. Ele dizia que o presídio é uma extensão da favela. Estar dentro ou estar fora é uma questão de ocasião, não faz tanta diferença…
AMILTON – No presídio ela vai encontrar os iguais. Quem está lá? Os pretos, os pobres… É o mesmo gueto, a mesma cultura, os mesmos sofrimentos, o mesmo uso de drogas, o mesmo tráfico de drogas. Veja só a maldade. Parece que o presídio é o lugar reservado para eles. E tem gente que termina acreditando que esse é o lugar deles. Esse lugar é reservado para esses caras, que não somos nós. Claro que, de vez em quando, pega um dos nossos para fazer de conta que as coisas funcionam.
OP – É possível, no âmbito da lei, construir alternativas que se adequem a cada indivíduo?
AMILTON – Isso é um problema da sociedade civil, não é um problema da lei. A lei é geral. Eventualmente, (a alternativa) pode ser o cara ficar internado no hospital tomando drogas até limpar. Há mil hipóteses. O que eu não posso dizer é que eu vou botar todos os caras no presídio e vou dar essa resposta do presídio para todos os problemas. Não tem lógica. Todo mundo sabe que punir gera mais violência. A gente descobriu que presídio só gera mais criminosos. Talvez necessitemos que eles continuem criminosos para eles representarem lá fora o mal que existe dentro de nós.
OP – O senhor falou ser contra o Estado, mas o Estado não seria o caminho para restabelecer esse equilíbrio?
AMILTON – Se tu acreditar no Estado, sim. É um discurso bonito, só que o Estado não existe. O Estado são pessoas que estão lá dentro. É uma barbada dizer isso, porque você tira o seu da reta. O problema é teu. Claro que tu podes dizer que existem Estados mais democráticos. Pode ser, mas não é a regra… O problema do Estado é que ele tem de ter o monopólio do poder. E o poder precisa de verdade. Ele impõe determinadas verdades. Isso, para mim, não serve.
OP- Tenta-se muito reformar o nosso Código Penal, que é da Era Vargas. O senhor acha que dá para fazer isso? É um caminho?
AMILTON – A gente tem de caminhar para reduzir drasticamente os tipos penais. Direito Penal não pode ser para uso de drogas, aborto, estelionato, cheque sem fundo, furto em supermercado etc. Tem coisas que não têm o menor significado. Pela maldade, uma relação de proporcionalidade. A maldade do Direito Penal, a maldade do presídio é desproporcional em relação à conduta que se quer punir. Tem de deixar o Direito Penal só para crimes bem pesados, que agridem. O que nos agride? Corrupção, estupro, assalto… Pega esses crimes fortes, reduz fantasticamente (os tipos penais), tira essa população carcerária e se preocupa com os delitos mais sérios.
OP – Tratando dessa proporção entre a violência do crime e a violência que é o presídio. A punição é severa demais para o delito que se pretende punir?
AMILTON – Ah, sim. A pena é eterna para o cara. Você já entrou num presídio? Suportaria passar lá um mês? Talvez tu preferisses a pena de morte. O presídio é muito mais cruel. Tu pegas toda a história do cara para frente, pegas todo o sofrimento da família, é um grau de dor indizível. É desumano. Para Nietzsche, o problema não esta no sofrimento, está na inutilidade do sofrimento. Se tu sofres sabendo que tem alguma utilidade, tu topas. (Presídio) é um sofrimento inútil, maldoso. Acho que é o momento que nós nos revelamos mais próximos dos animais. Acho que não temos salvação. É aí que entra o papel da Defensoria Pública, para minorar essa dor. Talvez seja, dentro do Direito, a atividade mais digna e humana.
OP – Quando o senhor ingressou na magistratura, já chegou com essas conclusões?
AMILTON – Não, entrei na magistratura muito jovem e minha formação sempre foi cível. Depois comecei a trabalhar no criminal. Acho que isso foi mais inquietação. E tentei julgar o tempo todo assim como estou julgando. Claro que tinha alguns caras que eu botava na cadeia. Era com grau de sofrimento terrível, mas tinha situação onde a intolerância era tão grande que tinha de prender os caras. Mas ainda acho que, se tiver de prender alguém, tem que ser como um ato de amor, não como vingança.
OP – Como essa postura foi recebida no meio?
AMILTON – Você ganha chocolates se adivinhar (risos). O pessoal não gosta. O meio jurídico é conservador. Os que se dedicam um pouquinho, que estudam Direito Penal, estudam de maneira séria, percebem que não dá. O grande problema do Direito Penal é que ele chega tarde. Chega quando a mulher já morreu, foi estuprada ou assassinada. Ele não faz nada pelas vítimas. O que nós temos que fazer é tentar chegar antes.
OP – E essa mudança é possível por meio do Direito?
AMILTON – Tem de ser. Estamos num grau tão medieval que estamos sendo revolucionários sendo conservadores. Estamos lutando para não piorar. Os caras querem piorar, aumentar os tipos penais, as penas, a criminalização. Estamos lutando para preservar as conquistas e sendo absolutamente revolucionários. Estamos na Idade Média. Finalmente encontraram o elo entre o macaco e o homem. Somos nós. O homem não chegou. Eu me recuso a acreditar que nós somos humanos.
OP – O que se tem chamado de Direito Alternativo, como o senhor definiria isso?
AMILTON – Eu trabalhei desde o início no Direito Alternativo. É um movimento que foge da massa dos juristas. Nasceu, no Brasil, no Rio Grande do Sul, em 1992, mais ou menos. Buscávamos uma pratica teórica destinada a operadores jurídicos comprometidos com a radicalização democrática. Olhamos o Direito e vemos o que podemos fazer para colocá-lo a serviço da radicalização democrática. São pessoas que chegaram ao Direito Penal e viram que é um troço antidemocrático e fascista. É um Direito alternativo, alternativo a um Direito fascista.
OP – O senhor acha que, na prática da magistratura, foi até o limite? Frustrou-se de alguma forma?
AMILTON – Tiveram vitórias e derrotas. Quando tu lutas, tu não estás preocupado com o resultado, estás preocupado com a luta. Para ter uma ideia de derrota, quem fazia parte do Direito Alternativo na época eram os ministros (do Supremo Tribunal Federal) Rosa Webber e Edson Fachin. É o problema dos caras que chegam ao poder. Se tu não te seguras, o poder te engole.
OP – Eles levaram alguma coisa do Direito Alternativo para o STF?
AMILTON – Não, os caras viraram uns direitões. O poder tem um fascínio que tu não imaginas. Os caras entram num grau de arrogância que eles estão legitimados a fazer tudo que eles querem.
OP – Tem como se proteger do poder? E como seria?
AMILTON – A gente tem de estilhaçar o poder de tal forma que cada vez mais ele seja diluído em diversas pessoas. E para isso teria de contar com a sociedade. Uma vida mais cooperativa.
OP – Seria um poder tão democratizado que não tivesse margem para aspirações totalitárias?
AMILTON – É uma contradição o que vou falar, mas acho que o poder tem que estar na pessoa que não necessita do poder. O cara está num grau de sofisticação que ele pode mandar o poder à merda. Que pudesse dizer não a tudo isso, que não precisasse se comprometer com ninguém. Um exemplo que tenho é do papa Francisco. É pelo grau de bondade, o tesão não é pelo poder.FrasesAlguns caras eu botava na cadeia. Mas, se tiver de prender alguém, tem de ser como ato de amor, não vingança
PerfilO desembargador gaúcho Amilton Bueno de Carvalho atuou no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. É um dos principais defensores do Direito Alternativo, corrente que se considera “abolicionista” e prega o fim do Direito Penal. O magistrado tem uma série de livros e teses sobre o assunto. Ele também defende que a lei existe para manter o poder dos detentores de riqueza e garantir a subordinação dos pobres.
PERGUNTA DO LEITOR
Paulo Quezado , 60 anos, advogado criminalista
PAULO QUEZADO -Diante dos estudos de Darcy Ribeiro, Sérgio Buarque de Holanda e outros sociólogos que estudam o Brasil a partir da miscigenação, o que falta para nascer no direito brasileiro?
Amilton – Tenho a sensação de que a gente não pode falar no Direito sem falar no operador jurídico. Temos que ter esse compromisso com a radicalização democrática e não ter o Direito como instrumento da opressão, mas como garantidor da liberdade. Acho que a nossa estrutura de saber é montada por nós, juristas, para a exclusão. Ou seja, a lei perde seu sentido ético, porque ao invés de ser um limite ao poder desmesurado, começa a ser usada como instrumento de opressão. Se é que algum dia possa ser útil, o Direito é nesse sentido de compromisso com os excluídos. O problema é que quem faz o Direito (Poder Legislativo) são os que mantêm a exclusão. E nós temos uma luta para tentar fazer com esse saber fascista não se faça carne na vida das pessoas.