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Centro Centro de Justiça Restaurativa da Defensoria Pública do Ceará foi destaque no jornal “O Estado de S. Paulo”

O Centro de Justiça Restaurativa da Defensoria Pública do Ceará, foi destaque em reportagem do jornal O Estado de S. Paulo. A matéria conta a respeito da importância da ação da Defensoria na recuperação de um jovem que cometeu uma infração. Quer saber mais sobre essa iniciativa? confira a matéria a seguir

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Da periferia de Fortaleza, a adolescente tinha 14 anos quando foi violentada sexualmente
pelo namorado um ano mais velho. A primeira ação adotada pela família foi realizar um exame de corpo
de delito na delegacia mais próxima de seu bairro, na capital cearense, onde foi constatado o ato sexual
forçado. Tomado por ira, o pai decidiu que a cruzada contra o abusador de sua filha seria travada na
Justiça, com todo o vigor necessário para condená-lo às penas mais rígidas cabíveis.

Ao longo do processo, porém, viu outro caminho. Ainda na delegacia, foi encaminhado ao Centro de
Justiça Restaurativa da Defensoria Pública do Ceará, onde conheceu a defensora Erica Albuquerque,
que coordena a iniciativa. Esse é um de pelo menos 28 programas de solução judicial pacífica
espalhados pelo País, segundo dados de 2019 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

 

A justiça restaurativa não significa impunidade, mas tem o objetivo de tornar a vítima a
protagonista do processo judicial. As práticas tentam garantir que as partes envolvidas no conflito
possam encontrar soluções pacíficas para os problemas. No lugar da privação de liberdade ou de penas
convencionais, o ofensor, como é chamado o autor da infração, pode responder por seus atos de forma
alternativa, mediante acordo firmado com a vítima após processo de discussão guiada por facilitadores,
os profissionais responsáveis por mediar as conversas. Segundo especialistas, esse modelo exige
cuidados especiais para evitar o efeito rebote de revitimização de quem sofreu a violência. É
fundamental que as vítimas concordem em participar dos procedimentos, mas, em casos delicados
como violência familiar, essas pessoas podem ficar expostas aos agressores.

Os processos restaurativos podem, a depender do método, confrontar vítima e ofensor, o que exige
abordagem especial para evitar que o trauma seja revivido. Outro fator que deve ser levado em
consideração é a disposição das partes envolvidas em construir soluções pacíficas. Como os casos
podem envolver dezenas de pessoas, a justiça restaurativa pode ter seu potencial limitado em situações
delicadas – ou seja, não sendo aplicável em todas as situações de conflito.

Além das pessoas envolvidas diretamente no caso, a justiça restaurativa permite que familiares, amigos
e comunidade participem do processo para que a solução pacífica satisfaça a todos. Foi o que ocorreu
no caso da adolescente violentada. O pai da jovem seguiu com o processo na Justiça, mas deu uma
chance para as sessões de restauração. A prática escolhida foi a do círculo de construção de paz, que
colocou pai, filha, o ofensor e a mãe do garoto frente a frente para dialogar. “Imaginei que não iria
aguentar, mas a preparação que fizeram tornou o processo maravilhoso. Acabou me fazendo ver que há
outras formas de resolver a situação sem precisar ter litígio, briga e contenda entre as partes. Eu chorei.
Foi algo que restaurou a minha alma”, disse ele ao Estadão – os nomes do pai e da filha não são
divulgados por exigência judicial.

Na favela de Ilha Dourada, em Fortaleza, outro pai viu o filho de 16 anos ser condenado a 6 meses de
internação em uma unidade para menores por assalto a mão armada. Pouco tempo após cumprir o
prazo, ele voltou à reclusão. Dessa vez, porém, vítima de um crime forjado por policiais que armaram a
cena de um flagrante de tráfico de drogas. O juiz reconheceu a inocência do garoto no segundo delito,
mas determinou sessões de justiça restaurativa.

A vítima do assalto preferiu não participar dos encontros, que foram conduzidos só com o ofensor e
seus familiares. O processo no centro da Defensoria durou mais de um ano. O pai elogia o resultado.
“Ele (o rapaz) mudou completamente. Serviu de lição. Hoje estamos todos unidos. Ele mudou o
comportamento em casa também”, afirmou. “Eu achava que tudo estava perdido, mas elas
(facilitadoras do Centro de Justiça Restaurativa) chegaram e me deram uma luz no fundo do poço. Eu
já estava em depressão. Não queria atender meus clientes. Foi onde achei forças e graças a Deus deu
tudo certo”, contou.

O inquérito contra seu filho foi trancado depois do círculo restaurativo. Aos 18 anos, ele tem um filho e
trabalha com o pai como pintor de imóveis. “O governo deveria investir muito mais num programa
desse aí do que botar uma Febem (antiga Fundação Casa) para o menor ficar lá estressado. Não
funciona”, afirma o pai.

ESTRATÉGIAS

Os métodos utilizados para construir esses acordos variam de encontros pessoais entre vítima e ofensor
aos chamados círculos de construção de paz, que podem incluir dezenas de pessoas ligadas ao caso. Em
geral, os procedimentos focam na escuta atenta das partes, na comunicação não violenta e no foco aos
efeitos gerados na vítima. As decisões tomadas nas sessões têm validade judicial, mas ainda podem
passar por revisão do juiz responsável pelo processo, principalmente se não houver cumprimento dos
acordos. No caso da jovem abusada sexualmente em Fortaleza, os círculos tiveram como resultado um
acordo entre os parentes da vítima e o ofensor, que concordou em passar a frequentar a mesma Igreja
do pai da garota como parte da solução do conflito. No entanto, o juiz responsável pelo caso proferiu
uma sentença condenatória contra o jovem infrator.

Tocado pelas ações desenvolvidas na Defensoria, o pai da vítima foi pessoalmente ao juizado pedir ao
magistrado responsável pelo inquérito que arquivasse o caso, pois havia encontrado alternativa para
fazer justiça. A solicitação foi acatada. “Ao invés das pessoas brigarem, digladiarem e se agredirem, eles
levam a gente para um caminho do diálogo. Eu não conseguia enxergar o outro lado”, disse o pai.

EM HELIÓPOLIS

A justiça restaurativa pode ser aplicada em diversas áreas, desde que o objetivo seja oferecer soluções
pacíficas aos conflitos estabelecidos, como acontece nas escolas e órgãos públicos de Heliópolis, em São
Paulo. O bairro participa desde fevereiro da segunda etapa do programa “Formação Prática de
Facilitadores de Círculos de Construção de Paz”, promovido pelo Instituto Paulista de Magistrados
(Ipam). O objetivo dessa iniciativa é oferecer aos servidores dessa região paulistana um curso
introdutório dos valores e princípios das práticas restaurativas.
A formação é uma das iniciativas pioneiras da Justiça no País, sobretudo fora dos tribunais e delegacias,
como parte de um projeto popular em Heliópolis desde 2005. Mas foi só no ano passado que a ação
ganhou novos rumos com o apoio do Grupo Gestor da Justiça Restaurativa do Tribunal de Justiça de
São Paulo, que criou na região o projeto-piloto da Capacitação de Formadores em Processo Circular.

OUTRA FORMA DE VER

Para a defensora e facilitadora Erica Albuquerque, casos como o da adolescente de Fortaleza
demonstram o sucesso da justiça restaurativa quando comparada ao processo penal tradicional. Ela
argumenta que a proposta do centro gerido pela Defensoria é “cuidar” e “compreender quais as
necessidades dessas pessoas a partir do conflito que surgiu com a prática de um ilícito”. “A Justiça
restaurativa não é a salvação do mundo e não pode ser aplicada a todos os casos. Também não podemos
garantir que 100% dos acordos sejam cumpridos, mas hoje o porcentual de alcance é altíssimo, porque
é uma justiça construída com base na horizontalidade.”

Em Fortaleza, são atendidos exclusivamente casos processados pela Vara da Infância e do Adolescente.
O foco da atuação são crimes de menor potencial ofensivo, como furto e tráfico, mas também surgem
infrações complexas, como tentativa de homicídio e violência sexual. Em 2021, o centro atendeu 103
casos, com taxa de acordos próxima de 80%. “No processo tradicional, a vítima ocupa o papel de
testemunha e muitas vezes é objetificada, sem ter as necessidades atendidas”, avaliou a facilitadora
Livia Cavalcanti.

A justiça restaurativa pode ser aplicada em qualquer fase do processo penal, seja na etapa inicial, ou
durante a execução da pena. Basta somente que a autoridade responsável pelo caso – um juiz ou até
mesmo um delegado – julgue pertinente encaminhar o processo para núcleos de restauração, em vez de
seguir na via tradicional. Além da iniciativa do agente público, um princípio fundamental das práticas
restaurativas é a voluntariedade – os envolvidos precisam desejar participar das ações.

REGULAMENTAÇÃO

No sistema jurídico internacional, esses métodos começaram a ser adotados entre as décadas de 1970 e
1980, sobretudo nos Estados Unidos. O Brasil começou a receber as primeiras influências dessa
experiência ainda na década de 1990, mas foi só nos anos 2000 que os primeiros programas
começaram a ser estruturados e a discussão ganhou força no meio jurídico. A vanguarda desse
movimento no País foi liderada por projetos criados no Rio Grande do Sul, no Distrito Federal e em São
Paulo.

Algumas iniciativas restaurativas estão em vigor há mais de uma década no País, porém, ainda não
existem leis que regulamentem as práticas utilizadas Brasil afora. Diante da falta de diretriz, os gestores
das iniciativas decidem com base nos recursos disponíveis e nas circunstâncias qual será a metodologia
aplicada. Professora de Direito Penal da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio) Fernanda Prates afirma
que a justiça restaurativa, no modo como vem sendo implementada, cria um contrassenso ao
incorporar suas metodologias ao sistema criminal.

“O que se busca não é uma justiça complementar ao sistema penal, mas que seja suficientemente capaz
de ser uma alternativa real ao penalismo”, afirma ela. “Um dos grandes benefícios da prática é tentar
resolver conflitos para além da prática penal. Historicamente percebemos que não deu certo resolver
conflitos a partir da imposição de pena. Muitas vezes não é satisfatório para o ofensor nem para a
vítima.”

 

Fonte: ESTADÃO