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Defensora Amélia Rocha escreve sobre “Diálogo das fontes” no O Povo

Amélia1. É verdade que tem uma lei de 2014 que determina que na ação de busca e apreensão pelo atraso nas prestações de financiamento de veículo a única forma de receber o veículo de volta é pagar todo o contrato restante, inclusive as prestações que ainda não se venceram?

RESPOSTA: É verdade que existe tal previsão no Decreto Lei 911/69 (com as alterações das Lei 10931/2004 e Lei 13043/2014), mas tal norma tem constitucionalidade questionada no Supremo Tribunal Federal (ADIN 2591). E além disso, quando se trata de aplicação aos contratos de consumo é preciso avaliar o diálogo das fontes.

2. O que é diálogo das fontes?

RESPOSTA: É o próprio CDC – Código Brasileiro de Proteção e Defesa do Consumidor, no seu artigo 7º, dizendo que o direito do consumidor não se resume a ele, que há outros direitos de consumidores, em outras leis. É uma janela interpretativa aberta em favor do consumidor, de modo que leis que regulam contratos específicos – como no caso do Decreto-lei 911/69 que trata da alienação fiduciária – não podem ser aplicadas sozinhas em contrato de consumo, que precisam dialogar com o CDC. Assim é que em contratos de consumo de plano de saúde, é preciso diálogo entre o CDC e a Lei 9656/98 (conhecida como leis dos planos de saúde), por exemplo. O Decreto-Lei 911/1969, assim, quando se tratar de contrato de consumo, de igual forma, precisa dialogar com o CDC, ainda mais quando se tratar de adimplemento substancial.

3. E o que é adimplemento substancial?

RESPOSTA: Quando uma quantidade considerável das parcelas do contrato já tiverem sido pagas. Se, por exemplo, num contrato de 36 parcelas, 25 já tiverem sido pagas. O adimplemento substancial vem sendo aplicado para impedir a busca e apreensão em detrimento do direito do consumidor, como se pode ver em várias decisões judicias a exemplo da seguinte do Tribunal de Justiça do Ceará, de 09/2014: “(…) I – Atenta contra a boa-fé objetiva a busca e apreensão, quando o contrato de financiamento está substancialmente adimplido. In casu, foram pagas 33 (trinta e três) de 36 (trinta e seis) parcelas. II – Configuraria ato desproporcional se o devedor tivesse que suportar o ônus de perder a posse do veículo alienado mesmo após ter quitado quase a totalidade das prestações pactuadas. III – Aplicação da teoria do adimplemento substancial ou inadimplemento mínimo, segundo a qual se o devedor já cumpriu substancialmente a sua obrigação, não há suporte jurídico para a imposição a ele de um prejuízo desproporcional.” (transcrição parcial da ementa de decisão nos agravos de instrumentos ns 40308-90.2010.8.06.0000/0 e nº. 38946-90.2010.8.06.0000/0). No mesmo sentido, a decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: “(…)IRRESIGNAÇÃO AUTORAL POR ENTENDER QUE NO CASO DA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA, A RESTITUIÇÃO DO BEM SOMENTE PODE SE DAR APÓS O PAGAMENTO DAS DÍVIDAS VENCIDAS E DAS VINCENDAS, NOS TERMOS DO DECRETO LEI 911/69. Interpretação do referido dispositivo que deve ser associada às normas de proteção do consumidor, no sentido de que pode o devedor purgar a mora mediante o pagamento do débito vencido, não lhe sendo exigida a quitação da integralidade da dívida pendente. Princípio da Preservação do Negócio Jurídico. Apelado que já quitou, até onde se sabe, 37/59 parcelas estabelecidas no contrato, e, portanto, exigir o depósito integral, para só então ter restituído o bem, na forma do art.3º, §2, do Decreto Lei nº911/69 contraria frontalmente a função social do contrato e a vedação do enriquecimento sem causa, à luz da teoria do adimplemento substancial que permeia o caso concreto. (…)” (transcrição parcial da ementa da decisão no processo n. , 0011320-48.2011.8.19.0037)