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Defensora Emanuela Vasconcelos assina a crônica “É o que tenho pra hoje”

emanuela leiteÉ o que tenho pra hoje*

Em um daqueles dias em que saímos de casa sem muitas expectativas, recebo para o primeiro atendimento da manhã, a Dona Raimunda, senhora de meia idade, com sofrido semblante, mas que, a todo custo, desafiava as minhas percepções com um resistente sorriso.

Dona Raimunda ingressara com Ação Judicial, pedindo a internação compulsória de seu filho, Joaquim, em virtude da dependência química que teria absorvido todas as suas forças, deixando-o incapaz de decidir sobre sua vida e sua saúde. A mãe, pois, não portando mais qualquer recurso pessoal capaz de lidar com o filho toxicômano, reivindicava força estatal para compeli-lo ao tratamento.

No dia do atendimento, eu tinha a árdua função de comunicar à Dona Raimunda de que o laudo social não havia sido favorável ao seu pedido de internação e que o processo tomaria um rumo mais espinhoso dali por diante, exigindo de nossa parte mais esforço para comprovar o que estávamos alegando.

Aquele encontro, no entanto, nos reservava outras lições: eu sequer tive oportunidade de falar de processo ou meios de defesa. Naquele dia, eu precisava mesmo era ouvir e a experiente senhora não se fez de rogada ao me ensinar.

Logo após os primeiros cumprimentos, como de costume, confirmei a identidade da Sra. Raimunda e abri o processo para prestar as informações técnicas, mas fui prontamente impedida de continuar, pelo falar espontâneo e honesto de minha interlocutora:

Pelejo com isso há muito tempo e queria mesmo era lhe falar. A senhora teria um tempinho para me ouvir?

Não me restou outra opção (e nem poderia!), a não ser guardar aqueles papéis e emprestar, fraternalmente, os meus ouvidos e toda a minha atenção para aquela emocionada narrativa que me fora anunciada:

A Senhora não sabe, mas sou mãe de 8 (oito) filhos. Como pobre, criei todos com dignidade, são trabalhadores pra danar. E olhe que o pai deles me deixou quando eram tudo pequeno, de carreirinha. Nunca passaram fome! Mas o Joaquim, meu Deus do Céu, num posso adivinhar porque ele não deu certo na vida. Ele odeia a mim, aos irmãos e ao mundo todo. É como se a gente morasse com o inimigo em casa. Temos que pastorar ele dormir, pra gente ir dormir também, pois eu tenho medo que ele faça uma besteira com alguém ou até com ele mesmo. Ele acorda às 02:00 horas da manhã e ganha o mundo atrás de bicos pra ganhar os trocado dele. É até trabalhador, mas tudo que ganha até as 10:00 da manhã ele gasta no mesmo dia, com bebida e com as maldição das drogas. Chega em casa sem nada e às vezes todo sujo e espancado pelos pariceiros da rua. É uma tristeza ver um filho se acabar daquele jeito.

Dei uma pausa no desabafo, quando afirmei à Dona Raimunda que a gente teria que juntar esforços, e provas, para conseguir internar seu filho e que ela poderia conseguir algumas testemunhas para tentarmos mostrar para o juiz a verdade sobre o que ela acabara de me contar. Dona Raimunda me olhou de forma penetrante, como se estivesse cansada de falar, e sentenciou:

A Senhora é mãe, né!? Somente Deus é capaz de testemunhar todo o esforço que uma mãe é capaz de fazer por um filho, todo o sofrimento que podemos suportar. De tudo isso que lhe contei, meus vizinhos não sabem nada, por que isso tudo se passa aqui (e bateu no peito nessa hora, indicando o coração). Mas esse mesmo Deus me deu essa cruz pra carregar, haverá de me dar os “mei” de suportar. Doutora, vamos acabar com esse processo, porque, além do Joaquim, tenho outro filho operado em casa, que não levanta nem pra beber água. E também, eu estou até mais descansada esses dias porque o Joaquim está pelo menos dormindo. Ele não aceita tratamento, mas ele já está tão cansado dessa vida que está chegando em casa já quase morto, só faz cair no canto dele. E se ele dorme, eu durmo também!

Eu pedi à Dona Raimunda para pensar melhor e lamentei não poder lhe ajudar mais, tendo ouvido como resposta:

Ave Maria, Você me ajudou demais! Tomei sua manhã quase toda e tanto tempo fazia que não tirava uma prosa dessa com alguém. Olhe, eu não tenho medo da vida não, só entrei com esse pedido aí porque tenho medo de morrer e não ter ninguém pra cuidar do Joaquim, mas enquanto eu estiver vida eu estou lutando pra mode ele se curar. Isso é mesmo uma doença, né Senhora!? É isso que tenho pra hoje e vou já cuidar do almoço dos meus meninos… inté.

Voltei meu olhar para o começo do meu dia, em que me achava “meio borocoxô”, e inspirei-me de ânimo novo ante aquela autêntica luta pela vida, o hercúleo entendimento existencial diante “do que tenho pra hoje”.

*Emanuela Vasconcelos Leite – Defensora Pública em Sobral