Com a palavra o Defensor

Dra. Elizabeth das Chagas Sousa

Beth com a palavraNo mês dedicado às mulheres, em função do dia 8 de março, a coluna Com a Palavra, o Defensor entrevista a Defensora Pública Elizabeth Chagas, do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (NUDEM), que conta como é garantir o acesso à justiça, no sentido amplo da atuação, a um público alvo que historicamente tem sido oprimido. “Não é fácil, ante a disseminação do machismo garantir o acesso à justiça, em sentido amplo, para mulheres em situação de violência doméstica e familiar, visto que é preciso romper barreiras e preconceitos, trabalhar dependências, fortalecer mulheres marcadas pelo dor de uma vida, enfim lutar contra uma cultura nefasta que macula gerações e adoece a sociedade”, afirma. Leia na íntegra:

Adpec – Há quanto tempo a senhora atua na Defensoria Pública?

Elizabeth Chagas – Sou Defensora Pública desde setembro de 2006, ou seja, há mais de oito anos. Fui a primeira Defensora Pública da comarca de Várzea Alegre; posteriormente atuei em Júri no Crato e em Maranguape; também trabalhei nas demais demandas tendo em vista que era a única Defensora na comarca. Em dezembro de 2008, iniciei minhas funções no Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher e lá permaneci, me titularizando no NUDEM.

Adpec – Como é o seu dia a dia de trabalho no Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (NUDEM) e quais as principais demandas do público alvo?

Elizabeth Chagas – O dia a dia do trabalho é composto por uma parte interna e uma parte externa. Na parte interna, faço o atendimento humanizado e especializado das mulheres ofendidas em violência doméstica e familiar. Humanizado e especializado porque a mulher recebe um tratamento diferenciado e sem julgamentos de modo a não torná-la vítima novamente de preconceitos, constrangimentos, enfim, atitudes que poderiam levá-la a não buscar mais ajuda. Por isso é importante que ela se sinta encorajada e forte sabendo que chegou no lugar certo.

Ainda na parte interna no NUDEM, após ouvir a mulher é preciso dar os encaminhamentos ao caso, verificando as questões mais urgentes e todas as demais que se fizerem necessárias. Assim, é preciso ver a necessidade de se pedir logo as medidas protetivas de urgência descritas na Lei Maria da Penha, se há necessidade de abrigo, hospital, profilaxia da gravidez, analisar se faltou algo na delegacia e enviar ofício alertando para a necessidade de: B.O, expedição de guia de exame de corpo de delito, inquérito policial, transporte para pegar os pertences pessoais dela, etc. Empós é preciso explicar as demandas cíveis (indenizações), fazenda (Ação Civil Pública), de família (alimentos, divórcio, reconhecimento e dissolução de união estável, partilha de bens, guarda, internação compulsória, etc) e criminais (queixa crime) possíveis no caso, bem como esclarecer toda a documentação necessária. Também são feitas pesquisas internas com as mulheres atendidas no sentido de entender a situação de violência e poder trabalhar formas de enfretamento. Não basta somente atender caso a caso sem entender sua complexidade e fazer levantamento de dados para melhor analisar também soluções com base em dados concretos.

A parte externa consiste em trabalho em rede, articulação com executivo, legislativo, judiciário e sociedade civil, cartilhas, folder, campanhas, educação em direitos, demandas coletivas, elaboração e desenvolvimento de projetos, sugestão de projeto de lei, estudos, pesquisas etc.

Os casos mais frequentes são as violências físicas, psicológicas e morais, havendo também vários casos de violência sexual e patrimonial.

Adpec – Quantos atendimentos jurídicos/mediações são realizados, em média, no seu núcleo, por dia?

Lizabeth Chagas – No NUDEM são realizados em média 15 atendimentos diários com vários encaminhamentos, além das ações (cíveis, de família, fazenda e criminal). Isso sem falar no trabalho externo e o público atingido.

Adpec – Como é garantir à mulher o acesso à justiça numa sociedade onde o machismo e o patriarcalismo ainda são tão fortes?

Elizabeth Chagas – O grande gerador da violência doméstica e familiar contra a mulher é o machismo. O problema é que o machismo é uma cultura e, como tal, bem difícil de combater e reconhecer. Daí a importância de um trabalho sério, consistente e constante no intuito de enfrentar essa grave ofensa aos direitos humanos que adoece e empobrece a humanidade. O machismo é um processo de dor e discriminação, onde o homem tem mais valor e mais espaço na sociedade do que a mulher. A partir da realidade do machismo, a mulher vivencia uma cultura marcada historicamente pela exploração, crueldade e opressão com todos os tipos de violência.

Acesso à justiça deve ser apreciado em sentido amplo e não em acesso ao judiciário. Na violência contra a mulher, há vários aspectos a serem analisados e providenciados para além de ações e demandas judiciais. Há toda uma necessidade de comunicação com a rede e atitudes que influenciam na efetividade da própria Lei Maria da Penha que, embora seja reconhecida como uma das três melhores leis do mundo, na área, precisa ser efetiva e amplamente implementada, lembrando que toda a interpretação dela deve ser no sentido de abranger as especificidades da mulher ofendida.

E como falar em acesso à justiça se não é possível entender as complexas realidades inclusive com os vários tipos de dependência que impedem o rompimento do ciclo de violência? É por isso que, no NUDEM, é feito um estudo das dependências das mulheres em situação de violência para melhor trabalhar as soluções. Inicialmente, antes de preparar o formulário e aplicá-lo, achei que a dependência econômica era a mais forte entre as dependências. No entanto, descobri que é a segunda maior depois da dependência comportamental, que é seguida da emocional e religiosa, sendo estes importantes fatores que também impedem que a mulher busque ajuda logo no início do problema e identifique a violência perpetrada.

Assim, não é fácil, ante a disseminação do machismo garantir o acesso à justiça, em sentido amplo, para mulheres em situação de violência doméstica e familiar, visto que é preciso romper barreiras e preconceitos, trabalhar dependências, fortalecer mulheres marcadas pelo dor de uma vida, enfim lutar contra uma cultura nefasta que macula gerações e adoece a sociedade.

Adpec – Recentemente, um projeto de sua autoria ficou entre as três melhores práticas do país, na categoria, Defensoria Pública, no Prêmio Innovare. Foi exatamente um projeto que envolve a educação em direitos para mulheres agrárias. Como foi ter esse reconhecimento público?

Elizabeth Chagas – O reconhecimento, sob o ponto de vista pessoal, é importante como saber que se está no caminho certo e como incentivador também, mas o maior valor mesmo deste reconhecimento pelo Innovare é para servir como meio de conhecimento, divulgação e disseminação da ideia de modo que ela possa ser aplicada por outras pessoas e o público alvo possa ser cada vez mais beneficiado. Ai é que tá o maior valor: servir… Porque gera mais incentivo ao projeto, mais visibilidade a essas mulheres agrárias, assim como mais benefícios a elas, contribuindo para uma cultura de paz e responsabilidade, pois as mulheres do campo, na maioria das vezes, estão em local de difícil acesso e têm sede e fome de acesso à justiça e à cidadania.

Adpec – Quais os maiores desafios na carreira de Defensor Público, sobretudo no seu núcleo de atuação?

Elizabeth Chgas – O maior desafio é fazer mais com menos… É ir além das estruturas dadas e demonstrar que Defensor Público é um transformador social que entende realidades e troca experiências com os assistidos num processo em que o amadurecimento é mútuo. É mostrar a extensão do que pode ser ou fazer o Defensor Público. Como membro da mais nova das Instituições do Sistema de Justiça, o Defensor Público vai desenhando seu papel no dia a dia e percorrendo um caminho que fornece vez e voz às pessoas em situação de vulnerabilidade.

No NUDEM, também tem a questão que a temática não é digerível para todas as pessoas. Esse é mais um desafio que é instigante ao mesmo tempo. É preciso trabalhar com preconceitos e mostrar o que o DUDEM pode fazer, assim como mostrar toda a extensão de um Núcleo que enfrenta a violência contra mulheres. Não é fácil, mas é apaixonante e envolvente, mormente por saber que ainda há muito o que fazer para a real implementação integral da Lei Maria da Penha e de todos os tratados internacionais que versam sobre a violência contra as mulheres e que consideram esta uma grave ofensa aos direitos humanos.

Adpec – E as maiores conquistas/realizações para a senhora?

Elizabeth Chagas – A maior conquista é ver que o trabalho vem dando resultados, tanto sob o ponto de vista individual de cada mulher que busca ajuda, como também sob o ponto de vista coletivo em relação ao desenvolvimento de projetos, práticas, formulários, estudos, dados, ações, educação em direitos etc. Como conquista e realização, ao mesmo tempo, falei acima do projeto Mulher Agrária: Autonomia Já!, vou citar mais dois exemplos de satisfação pelo resultado: 1) Escrevi um poema, o qual fica afixado na sala do NUDEM e minha maior satisfação foi ver que ele toca mulheres ofendidas e faz com que elas reflitam e se sintam amparadas no NUDEM. Isso é retorno; 2) O projeto Mulher sem Medo, que idealizei e saiu do papel, me dá uma imensa satisfação por ser utilizado um aparelho único no país que dá efetividade às medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha, pois a mulher, sem precisar apertar nenhum botão, ou visualizar o agressor, tem as informações através do aparelho. Nos casos aplicados, não houve nenhum caso de reincidência das agressões, o que contribui para diminuir o número de feminicídios. É mais uma ideia que sai do papel e gera resultados.