Com a palavra o Defensor

Dra. Gina Kerly Pontes Moura

Gina

A dra. Gina Kerly Pontes Moura foi designada para trabalhar, desde 2008, no Núcleo de Assistência aos Presos Provisórios e Vítimas da Violência – NUAPP. A atuação compreende, inicialmente, acompanhar pessoas privadas de liberdade cujos processos ainda estão em curso. Para quem já esteve do outro lado do balcão – ela foi delegada de polícia – a defensora pública tem uma visão muito lúcida e coerente do sistema prisional brasileiro. Para a dra. Gina, o maior desafio na carreira de defensor público criminal é hoje encontrar mecanismos para enfrentar com qualidade, responsabilidade e respeito ao assistido uma demanda que cresce exponencialmente. “O NUAPP tem dado exemplo de coragem ao sair dos gabinetes e imergir no sistema prisional. As ações intensificadas dentro das unidades prisionais nos presídios são exemplos e provas incontroversas disso: mesmo com toda a precariedade estrutural, número reduzido de defensores e estagiários, todo o aparato do núcleo é transferido para dentro de uma unidade prisional por um determinado período para o atendimento de todos os presos da unidade. Ressalto que isto não seria possível sem as parcerias com o NUDEP e a Secretaria de Justiça. É uma demonstração clara de que, quem quer, faz”, afirma.

Adpec – Há quanto tempo a senhora atua na Defensoria Pública?

Gina Kerly Pontes Moura – Estou na Defensoria Pública desde maio de 2003. Nesses 11 anos, trabalhei nas comarcas de Quixeramobim, Aquiraz e Maranguape. Em meados de 2005, fui trabalhar na 6ª Vara do Júri (vara que foi extinta e transformada na 9ª Vara da Fazenda Pública) onde permaneci por mais de três anos. Em 2008, fui designada para trabalhar no Núcleo de Assistência aos Presos Provisórios e Vítimas da Violência – NUAPP, ainda em formação.

Adpec – Como funciona, em linhas gerais, o Núcleo de Assistência aos Presos Provisórios e Vítimas da Violência (NUAPP)?

Gina Kerly Pontes Moura – O NUAPP segue a diretriz nacional de uma Defensoria Pública descentralizada, isto é, não restrita às dimensões do Poder Judiciário e mais próxima do cidadão. Como o nome já se refere, o NUAPP tem como público alvo, num primeiro momento, pessoas privadas de liberdade cujos processos ainda estão em curso. Isto envolve atuação em todas as hipóteses de prisões cautelares, à exceção das prisões civis, o que engloba o recebimento das comunicações de prisão em flagrante e preventiva, a promoção de pedidos judiciais relativos à liberdade e, sobretudo, zelar pelo respeito aos direitos da pessoa privada de liberdade. Isto significa que o papel do NUAPP vai bem mais além da petição dirigida ao magistrado: cabe ao defensor público o contato direto com o assistido ou assistida onde quer que esteja, o que é fundamental em se tratando de pessoa que está com a liberdade tolhida. Além do direito ao deslinde processual, cabe ao réu ou à ré o direito à informação.

Neste sentido, além de colher as reais necessidades do assistido ou assistida – seja em relação à sua situação processual, seja perante a administração penitenciária -, o defensor público do NUAPP é, em grande medida, o primeiro contato com a Defensoria Pública na seara penal e serve como elo entre o preso ou a presa e os defensores públicos das varas criminais e tribunal. Costumo dizer aos assistidos e assistidas: “Quando for perguntado(a) quem é seu advogado, diga que é a Defensoria Pública. Esta se desdobra em várias pessoas para prestar-lhe assistência jurídica da melhor forma possível”.

No tocante à vítima, a atuação do NUAPP é fundamental, considerando que os registros das entidades de proteção à vítima revelam que considerável número de denúncias provém da violência policial, o que envolve, em grande parcela, pessoas que são levadas à prisão. O sistema penitenciário também requer igual preocupação. Paralelamente a isso, muitas vítimas procuram o NUAPP em suas sedes da Aldeota e do Centro em busca de orientação jurídica e da intervenção dos defensores públicos, sobretudo junto às delegacias de polícia, tais como a solicitação de abertura de inquéritos policiais ou Termos Circunstanciados de Ocorrência.

Há ainda de ser destacada a função do NUAPP na tutela dos direitos coletivos que envolvam os presos e as presas provisórios e a realidade que os circundam. Destaca-se, também, o papel que o NUAPP tem cumprido no que diz respeito à construção de políticas públicas não só penitenciárias, mas também nas políticas públicas de segurança.

Adpec – Como é o seu dia a dia de trabalho no NUAPP?

Gina Kerly Pontes Moura – Na maioria dos dias da semana, estou na sede do NUAPP da Aldeota, onde lá trabalho com os colegas Bruno Neves, Emerson Castelo Branco e Carlos Nikolai. A sede funciona como o nosso QG. Atendo pela manhã, entrando um pouco no horário da tarde e raras são as vezes em que não levo trabalho para casa.

Por semana, recebo, em média, dois “anexos”, cada qual corresponde a um bloco com dez comunicações de prisões em flagrante, segundo a metodologia de trabalho implantada no núcleo. É necessário lê-los, entrar em contato com familiares do preso ou da presa, colher a documentação necessária, verificar a legalidade da prisão, para, só então, ingressar com o pedido cabível. Ainda na sede do núcleo, realizo atendimentos e procuro resolver demandas originadas nas unidades prisionais e delegacias, mormente as que impliquem em uso do aparato administrativo do NUAPP. Para casa, levo demandas mais complexas, petições pendentes e pesquisa e planejamento dos atendimentos.

Uma vez na semana, desloco-me ao Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa – IPF, em Aquiraz, o qual conta atualmente com 575 presas, sendo mais de 75% de presas provisórias. Vale salientar que, além do grande número de presas, essa comunidade é rotativa, o que implica num número ainda maior de atendimento. Lá, realizo atendimentos, colho alguns documentos necessários aos pedidos judiciais e fiscalizo outros direitos ligados ou não à liberdade (direito à saúde, alimentação, cumprimento de Alvarás etc). Como ainda sou responsável por seis delegacias de polícia, visito semanalmente uma delas.

Adpec – Quais as principais demandas do público alvo (casos mais frequentes no atendimento)?

Gina Kerly Pontes Moura – Sem dúvida, o pedido mais frequente é o de Relaxamento de Prisão por excesso de prazo na duração no processo. A demora processual é uma chaga na Justiça, de um modo geral. Por lidarmos exatamente com pessoas presas provisoriamente, a delonga processual e a indefinição da situação prisional é motivo de inquietude e aflição de quem está detrás das grades. Sempre quando esclareço sobre o funcionamento do processo, a pergunta mais frequente é “quanto tempo isso demora?”. Acredito que o peticionamento massivo do NUAPP, no que tange ao excesso de prazo, já gera uma pressão no Judiciário no sentido de imprimir maior celeridade processual, mudança esta ainda não tão expressiva, mas que tenho constatado no processo eletrônico.

Já as demandas ligadas ao aprisionamento feminino, embora não emplaquem o primeiro lugar, tomam hoje considerável espaço na minha escrivania e despertam um particular interesse em lidar com as questões de gênero, maternidade e saúde da mulher dentro do sistema prisional. Tem sido uma experiência valiosa lidar com inúmeras mulheres que, por razões muito próprias, findaram no cárcere e que não podem nem devem se submeter a um tratamento linear sem o recorte de gênero. Trabalhar com o público feminino me remete à minha particular experiência de mãe e mulher, o que é essencial para o exercício da empatia, algo que eu considero de mais belo na função do defensor público.

Adpec – Quantos atendimentos (jurídicos ou mediações) são realizados, em média, no seu núcleo, por dia?

Gina Kerly Pontes Moura – Não tenho como precisar a informação em termos de dia, uma vez que tal aferição é variável. Ressalto que, em suas sedes, a procura é realizada por familiares dos presos e das presas, sendo esta reduzida, haja vista o fato de muitos dos nossos assistidos serem pessoas abandonadas por seus entes. Daí a necessidade de atuação do NUAPP no local de recolhimento da pessoa privada de liberdade.

Em contrapartida a esse reduzido número, nas unidades prisionais, o número de atendimentos é bastante elevado. A cada visita ao IPF, atendo em torno de 15 a 20 pessoas. Já nas delegacias de polícia, o atendimento corresponde ao número de presos que se encontram na carceragem da distrital, o que, em média, tem oscilado entre 25 a 30 pessoas.

Por mês, o núcleo realiza aproximadamente 575. Tal número é consideravelmente aumentado em meses de ação intensificada em uma das unidades prisionais da região metropolitana.

Adpec – A senhora, que já atuou como delegada de polícia, como avalia o sistema prisional brasileiro?

Gina Kerly Pontes Moura – O confronto das duas experiências profissionais parece um paradoxo para quem vê. Costumo ironicamente brincar com isso ao dizer que já passei, sem traumas, pelo dilema da banana e do mamão – em alusão às propriedades funcionais das frutas. Na verdade, mesmo na polícia, sempre fui defensora pelo meu perfil profissional, o que não retrata exatamente um partidarismo favorável ou não ao encarceramento.

Prender ou não prender? Eis a questão… Parece ser este o dilema enfrentado pelo sistema penal brasileiro, com uma forte tendência ao aprisionamento, diretriz esta alimentada pelo discurso populista carregado de emoções irrefletidas, próprias e conaturais a uma vítima sedenta de vingança, mas que passam longe daqueles que querem, de fato, resolver o problema da (in)segurança pública.

A razão disso não está na simples afirmação de que os nossos presídios não oferecem estrutura para a ressocialização, como se a pena de prisão atendesse a essa finalidade. A famigerada ressocialização nada mais passa de um argumento para legitimar a prisão. Mas, antes que eu seja mal compreendida, esclareço que sou cética em relação à legitimidade e aos resultados de uma pretensa ressocialização através do instituto coercitivo da prisão. É como se a alma do indivíduo pudesse ser arrebatada coercitivamente através da privação da liberdade e disciplina no presídio. A ressocialização é antes como um direito do que um dever do preso ou da presa. Para tanto, o Estado deve, sim, oferecer mecanismos para que o titular do direito o exerça. Neste sentido, a ressocialização não deve ser vista como uma meta a ser alcançada, mas como uma forma de humanização da pena, notadamente a de prisão. Ninguém sai transformado da prisão senão por vontade própria, algo que vem de dentro para fora e não o reverso. A prisão é, por si, degenerativa e degradante, por melhor que seja.

Outro mito é a neutralização. Posso dizer, sem medo, que o argumento de preservação da ordem pública tem sido fundamento para a prisão preventiva de mais de 90% dos encarcerados ainda não julgados definitivamente. Em contrapartida, corre a olhos nus os inúmeros crimes que têm suas origens dentro das unidades prisionais. E ainda que se acredite na neutralização, a saída do presídio é uma realidade intransponível, por mais severa que seja a lei. A exclusão social do egresso e a experiência no submundo prisional potencializam a sua nocividade social, algo já há muito demonstrado nas estatísticas. O que se afigura é nada mais do que um círculo vicioso que se retroalimenta na própria violência do sistema.

O que preconizo não é uma descriminalização ou despenalização rotulada pelos meios de comunicação de massa como impunidade, mas na racionalização das formas punitiva. Precisamos não punir mais, mas sim punir melhor. Tanto se critica a aplicação de institutos como as penas alternativas, a medida cautelar de prisão domiciliar dentre outros pela ausência de fiscalização quando se investe maciçamente em presídios, os quais são onerosos e inconstrutivos.

E para os homicidas, latrocidas e estupradores? A estes sim compete o aprisionamento sopesado à altura de sua culpabilidade. No entanto, estes representam uma ínfima parcela nos presídio, a exemplo do que ocorre no IPF onde o crime de homicídio corresponde a menos de 5%. Contudo, o argumento que sedimenta a lógica da prisão para esta realidade punitiva tem servido de fundamento de toda a sorte de delinquência. Uma prova cabal da incompetência de nossas instituições para solver suas questões por vias menos drásticas.

Acrescento a isso a lamentável realidade de que nossas prisões nada mais são do que um legado da injustiça social. Já tive a infeliz e constrangedora experiência de solicitar a liberdade de quem furtou R$1,10 ou um óleo hidratante de um supermercado, deparar-me com a manutenção de prisão de moradores de rua pelo simples fato de não possuírem documento de identidade, a rotulação de crime hediondo de quem não dispunha mais do que oito balas de crack para consumo próprio, dentre outras situações já não incomuns e que fazem parte do cotidiano do defensor público criminal. O sistema carcerário brasileiro é espelho da nossa sociedade e reprodutor da sua exclusão social.

Adpec – Nas penitenciárias e casas de privação provisória de liberdade, quais as irregularidades mais comuns constatadas pela Defensoria?

Gina Kerly Pontes Moura – O que considero mais palpitante em termos de violação de direitos nas unidades prisionais é o esmagador número de presos provisórios. A lógica de insculpida na Constituição Federal como garantia constitucional de que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado é completamente subvertida pela realidade. Prende-se para depois julgar. Como produto disso, é muito frequente que a resposta apresentada na sentença seja consideravelmente melhor do que a enfrentada pelo preso ou presa durante o processo. Não é raro deparar-se com pessoas que são condenadas a penas não privativas de liberdade ou em regime aberto ou semiaberto, tendo aguardado o processo inteiro em prisão em regime fechado. Isto perpassa, em grande medida, por uma mudança na postura judicial dos magistrados de conhecimento, os quais precisam conhecer a realidade dentro dos presídios, matéria que parece estar restrita aos magistrados da execução penal.

Outro ponto marcante é a precariedade no atendimento à saúde e a ausência de oferta de atividades de ocupação aos aprisionados, algo pouco visto na unidade prisional feminina, mas bem marcante nas unidades masculinas. Costumo ouvir dos presos a afirmação “Dra., aqui somos presos 24 horas”, em alusão ao fato de permanecerem o dia inteiro dentro da cela sem qualquer atividade. Esta realidade, contudo, tende a ser mudada com a implantação e execução de projetos da Secretaria de Justiça voltados à educação e à profissionalização, o que já foi iniciado com bastante êxito no IPF.

Adpec – Quais os maiores desafios na carreira de Defensor Público, sobretudo no NUAPP? E as maiores conquistas/realizações?

Gina Kerly Pontes Moura – O maior desafio na carreira de defensor público criminal, sobretudo do NUAPP, é hoje encontrar mecanismos para enfrentar com qualidade, responsabilidade e respeito ao assistido uma demanda que cresce exponencialmente. O NUAPP tem dado exemplo de coragem ao sair dos gabinetes e imergir no sistema prisional. As ações intensificadas dentro das unidades prisionais nos presídios são exemplos e provas incontroversas disso: mesmo com toda a precariedade estrutural, número reduzido de defensores e estagiários, todo o aparato do núcleo é transferido para dentro de uma unidade prisional por um determinado período para o atendimento de todos os presos da unidade. Ressalto que isto não seria possível sem as parcerias com o NUDEP e a Secretaria de Justiça. É uma demonstração clara de que, quem quer, faz.