Nenhum ser humano humano é sem a convivência com outros. Dizia o filósofo: quem me humaniza é o outro. Exemplificando, quem humanizou Robson Crusoé naquela ilha distante foi o índio Sexta-feira. Isto posto, é fácil a conclusão de que ninguém pode suprir sozinho suas necessidades vitais, ou seja, um ser humano nega a sua humanidade se decidir viver sozinho.
Chegamos a esta e outras conclusões sobre nós mesmos porque somos os únicos seres que fazemos de nós objetos de nossas reflexões. Apesar disso, caminhamos ao longo da história com dificuldades extremas de aceitar o outro. Vale dizer, têm sido difíceis o desapego à nossa primitiva condição de quase animais e a construção do humano.
Acerta Friedrich Miller quando afirma que os humanos são canteiros de obras. Foi nesta construção que fomos descobrindo a imprescindibilidade do outro e vendo da inexorabilidade da sua aceitação, sob pena de sucumbirmos enquanto humanidade. O poder tem sido, ao longo dos últimos séculos, europeu, branco, masculino, jovem, saudável, heterossexual, cristão e rico. Não tem sido fácil para os negros, os índios, os pobres, as mulheres, as crianças, os jovens, os velhos, os judeus, os ciganos, os homossexuais, os deficientes e outros tantos se inserirem socialmente e perderem a invisibilidade a que foram postos.
Uma dessas discriminações, entretanto, a mim sempre falou mais alto – a que nós mulheres sofremos. Em 1948, com a Declaração de São Francisco, a ONU afirmou e quase todos os países ditos civilizados aprovaram que todos os seres humanos nascem iguais e livres. Entretanto, foi necessário a própria ONU aprovar outra Declaração específica para as mulheres, a Declaração contra todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, para que a humanidade constatasse o quão distante de patamares mínimos de cidadania se encontravam as mulheres em todo o mundo.
A luta continuou e os avanços para garantir os direitos anunciados foram se concretizando em forma de Convenções. A da mulher, a ONU aprovou em 1979 e o Brasil ratificou (com reservas) em 1981. Entretanto, apenas no texto constitucional de 1988 o nosso povo admitiu que homens e mulheres fossem iguais perante a lei. Foi mais um passo. Em 1994, com a extrema violência ainda existente contra as mulheres na América Latina, a Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou em Assembleia Geral ocorrida em Belém (PA), a Convenção para Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres.
Mesmo assim, foi preciso que uma nossa conterrânea sofresse duas tentativas de homicídio, por parte do marido, para que o Brasil fosse instado, pela OEA, a legislar contra a violência doméstica e familiar contra as mulheres. Surgiu assim, a Lei 11.340 em agosto de 2006, a Lei Maria da Penha.
Ano passado, a única delegacia especializada no atendimento de mulheres, em Fortaleza, registrou 12.650 ocorrências. A segunda delegacia da cidade em registros foi a de Defraudações com 4 mil. E difícil falar em conquistas das mulheres no Ceará quando corremos risco de morte dentro de nossas próprias casas e quem nos agride é o marido, o companheiro, o namorado ou o irmão.
Com o firme propósito de reverter este quadro o Governo do Ceará aderiu ao Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher e criou a Coordenadoria Estadual de Políticas para as Mulheres, vinculada ao gabinete do governador Cid Gomes. Estamos dando mais um passo.
Mônica Barroso – Defensora pública e coordenadora Estadual de
Fonte: Jornal O Povo, 30/11/2010